IV
 

Nossos antepassados pré-históricos conseguiram manipular e utilizar o fogo, buscando-o, ainda que no início, em sua forma natural. Alcançando uma importante etapa em sua evolução, a qual lhes marcou um novo início, podemos assim dizer, no caminho em que se desenvolviam.

Há milhares de anos ficou privado dessa prodigiosa ferramenta natural. Inicialmente, conhecia e temia o fogo, como todos os demais seres das florestas incendiadas por tempestades de raios, as quais ocasionavam, em épocas pouco chuvosas, verdadeiros estragos nessas extensões vegetais, levando o terror e a morte para muitas espécies.

Então, instintivamente, fugia do fogo e de suas conseqüências, passando ao largo, temeroso, sempre que podia, quando se deparava com essas catástrofes naturais. Por milhões de anos agiu assim nosso ancestral. Quando em grupo patrulhava as florestas em busca de caça, ou quando, desprevenido, era acossado por esses incêndios.

Assim, até vencer o medo atávico desse elemento, o qual estava arraigado em sua própria massa cerebral primitiva, muitos passos teriam que ser dados. Passos esses compreendidos como degraus de seu desenvolvimento, por conseguinte, gigantescos em sua importância na escalada que empreendia o novo ser, e em concordância com o lento caminhar de seu desenvolvimento intelectual, para o qual estava subordinado, a forma como sua evolução o direcionava nesse sentido. Levando-o até as condições necessárias para obter esse importante achado.

Certamente, nos primórdios dessa descoberta, vencendo a resistência imposta pelo instinto, perambulando pelos rescaldos dos incêndios, depois de cessados os temporais, e já com os braseiros apagados, os elementos mais corajosos e lúcidos, iam observar os estragos que o fogo ocasionava na vegetação e nas carcaças dos diversos animais mortos que encontravam.

Dessa maneira, quem sabe, pela primeira vez experimentaram o sabor da carne, calcinada pelas labaredas, desses animais. Não podiam deixar de notar a diferença que existia da carne de caça crua que estavam habituados a comer. Certamente agiram assim, levando depois os animais carbonizados para os acampamentos, mostrando aos demais do grupo.

Nessas ocasiões, com certeza, deixavam transparecer o espanto pelo fenômeno novo desse banquete. Separando as melhores partes dos animais estorricados que traziam e que tão diferentes lhes eram ao paladar.

De tudo o que acima foi dito, poderemos suscitar duas indagações: como essa descoberta (a utilização do fogo) ocorreu no âmbito de um cérebro primitivo e emergente, como o que possuíam os nossos ancestrais? E em que etapas dessa emergente evolução mental encontravam-se?

Como vimos anteriormente, nosso longínquo ascendente até então, entre um milhão e quinhentos mil anos atrás, vivia em grupos para obter melhor proteção e melhores condições para a caça, onde a cooperação entre os indivíduos era fundamental. Da mesma forma, começavam a estruturar a linguagem falada e a confeccionar os primeiros objetos de ossos e pedras.

Quanto à caça, essencial para a sobrevivência da espécie, elaboraram regras rígidas, as quais não podiam ser quebradas. Quando caçavam, só indivíduos adultos participavam; as crianças, velhos e mulheres ficavam no acampamento. Nesse período da sua evolução saía do nomadismo, os acampamentos já eram permanentes. Não podiam, em suas expedições predatórias, em busca de alimento, levarem mulheres e inaptos, sob o risco de não conseguirem esse alimento.

As mulheres nos grupos de caça gerariam controvérsias que afetariam toda a incursão, e os inaptos seriam um peso morto, fardo esse que não poderiam carregar.

A rudeza de métodos que utilizavam esses primeiros homens em suas caçadas e a eminência do sucesso delas, nessas épocas anteriores à história, os faziam intolerantes a tudo que fugisse ao condicionamento básico que as garantiam.

Foi assim que, através dessa intolerância, há mudanças em suas regras atávicas, que ganharam a sobrevivência por entre aquelas épocas remotas. Evoluíram, deixando um legado menos sombrio e da mesma maneira, menos rígido para nós, seus descendentes.

Esse instinto predatório, que possuía nosso ancestral, primordial para o sucesso da incursão, e consequentemente fundamental para a sobrevivência de todos, tão atrelado estava em seu ser, que nós, nos dias atuais, por uma herança atávica, ainda carregamos de forma latente, em algum recôndito de nosso cérebro, esse e inúmeros outros arremedos de instintos que lhes eram essenciais e por isso mesmo garantiam e faziam parte do seu dia a dia.

Assim sendo, nós, habitantes do século vinte e um, muitas gerações a separar-nos daqueles cenários longínquos, onde os homens primitivos formavam e condicionavam elementos que possibilitariam nossas descendências, deparamos em determinadas ocasiões com o afloramento desses mesmos instintos milenares, que pensávamos agora não mais possuirmos, e de certa forma, então, nos aproximarmos daquelas paragens distantes, e mais ainda, de sua essência da qual somos todos originalmente formados.